10/07/2016

O CORPO É O PONTO ZERO DO MUNDO

“O corpo é o ponto zero do mundo” (p.14), diz-nos Foucault; o corpo é o ponto de onde pode se dizer eu sonho, eu falo, avanço, imagino, percebo e nego as coisas que percebo e que imagino. Ele é um ponto nulo, um sem-lugar a partir do qual se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos, homotopias, heterotopias e utopias. Assim, “[t]odas aquelas utopias pelas quais eu esquivava meu corpo encontravam muito simplesmente seu modelo e seu ponto de aplicação, encontravam seu lugar de origem no próprio corpo.” (p.11) Um eterno retorno, do corpo às utopias e de volta ao corpo, um processo de recriação, do corpo utópico ao topos que dá, então, lugar ao corpo e o move, muda, desloca; e “[...] no limite, é o próprio corpo que retorna seu poder utópico contra si e faz entrar todo o espaço religioso e do sagrado, todo espaço do outro mundo, todo o espaço do contramundo, no interior mesmo do espaço que lhe é reservado.” (p.14) Do corpo ao corpo, do pó ao pó. 

REFERÊNCIA

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias / Le corps utopique, les heterotopies. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1 edições, 2013.

O NAVIO É A HETEROTOPIA POR EXCELÊNCIA

Uma cena. “O navio é a heterotopia por excelência.” (p.30) Penso em outra nau, mas a deixo em suspenso. Volto àquilo que me possibilitou fazer este movimento de uma nau a outra, preciso retornar ao que me permitiu conectá-las, não tanto por uma tábua que se atravessa da lateral de uma embarcação à lateral de outra por sobre o mar; antes, como um gancho que arremesso e se fixa no mastro da outra embarcação e por uma corda, que do gancho se estica, permite-me saltar de um ao outro – um caminho sem volta, é preciso calcular e analisar antes do salto, pois a corda que leva não me traz de volta –; ou ainda, deslizo de um navio ao outro não como tripulante que anda pela tábua ou se lança utilizando a corda, mas como corpo no qual esses topos que são as embarcações se formam, dissolvo-me e torno-me água, adoto o ponto de vista de mar (plano de imanência, plano liso) e assim posso mover-me de um a outro, sem mais os impedimentos que sujeito e objeto implicam.

Outra cena. Criança – “[...] quinta-feira à tarde – a grande cama dos pais. É nessa grande cama que se descobre o oceano, pois nela se pode nadar entre as cobertas; depois, essa grande cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta, pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois ali se pode virar fantasma entre os lençóis [...]” (p.20). Navegar, viajar, flutuar, devir. Vive-se, movimentos e repousos, deslocamentos e paradas; e de um modo geral há na sociedade uma diversidade de espaços: cafés, metros, ruas, hotéis, casas, fábricas etc.; não obstante, há espaços que não são apenas diversos, são diferentes, são absolutamente outro: conta-espaços ou heterotopias; e “[a]s crianças conhecem perfeitamente esses contra-espaços [...]” (p.20). Cria-se, descria-se, crê-se e crescem sobre a cama, debaixo dos cobertores e desfazem à chegada dos pais, mas “[n]a verdade, esses contra-espaços não são apenas invenção das crianças; acredito nisso muito simplesmente porque as crianças jamais inventam coisa alguma; são os homens, ao contrário, que inventaram as crianças, que lhes cochicharam seus maravilhosos segredos; e, em seguida, esses homens, esses adultos se espantam quando as crianças, por sua vez, buzinam aos seus ouvidos...” (p.20).

Mais uma cena. E se elas buzinam aos ouvidos dos adultos e lhes devolvem o segredo, seus segredos menores, as crianças não o fazem só: crianças ao Adulto, mulheres ao Homem, animais ao Humano, moléculas à Massa, mitos à Ciência [...] e os loucos, estes que agora, sem lugar para sua loucura, são enclausurados, medicados, (a)normalizados, educados, enfim, adoecem sob a razão. Estes, que tem suas potências utopicizadas, seus corpos homotopicizados, ainda arranjam espaços nestas distopias em que vivem para, como as crianças, heterotopicizar. Eles criam espaços outros entre o manicômio e a doença mental, nos interstícios fazem suas derivas, entre um porto e outro, entre um remédio e outro, entre um veredito e outras sentenças eles traçam linhas de fuga e escapam, mesmo que tenham de continuar no intermezzo, ainda que tenham de atracar aqui ou acolá para outra vez voltarem a navegar. E nesses movimentos de produzir heterotopias, eles fazem um enorme barulho, buzinam aos ouvidos, mas se pode ouvir ali um segredo, um segredo mais profundo, um segredo menor – um segredo que se contou a eles, que se esqueceu e que agora eles fazem lembrar.

Última cena, primeira cena. “O navio é a heterotopia por excelência.” (p.30) Penso em outra nau, o navio dos loucos, stultifera navis...
  Het narrenschip de Hieronymus Bosch

REFERÊNCIA

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias / Le corps utopique, les heterotopies. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1 edições, 2013.

PALMAS À PALMEIRA


PALMAS À PALMEIRA 

a palmeira estremece
palmas para ela
que ela merece

Eis o poema de rimas pobres e versos simples de Paulo Leminski, que num primeiro momento soa risível em seu jogo de palavras pueril, mas naquilo que reverbera há mais que o risível, há que se ouvir uma gargalhada. Ante ao símbolo desta terra brasileira onde canta o sabiá, esta imagem tropical já tão puída da palmeira, as palmas fazem repetir uma veneração (ufanista?), fazem repetir uma admiração, fazem repetir uma “miração”, uma mirada, um olhar que estremece, estremece com ela, ou antes que nos faz estremecer. Estremece diante do que ela faz reverberar... “Palmas para ela que ela merece”, dizia Chacrinha (outro clichê dos trópicos com sua suntuosidade carnavalesca em trajes e gestos), “palmas que ela merece” e repete-se outro bordão; e de bordão em bordão tece-se algo que escapa, algo que nos faz rir não da simplicidade das palavras – o inverso, a simplicidade das palavras faz-nos rir das frases feitas que carregam com ela sentimentos pré-fabricados, reações já sabidas, relações esperadas. A simplicidade do jogo (palmas à palmeira, que de palmas já é cheia) é o que estremece e faz verter em nós gargalhadas: de que importa à palmeira isto que o humano chama de “palmas”? No fundo de que importa a ela essa louvação? Ou o destaque em hinos, bandeiras, poemas? Diante de toda simbologia, sentimentalismo e imagética da brasilidade, a palmeira dá de ombros e é, apenas é, é aquilo que é: vida – estremecendo, vibrando; e estremece, estremece-nos, vibramos. Haveria algo de ser mais tropical, mais tropicalista que esta vitalidade da palmeira?
     Então, palmas para ela que ela merece!