Belchior - Como o diabo gosta
Em tempos politicamente tenebrosos, retomarmos uma música politicamente tão
intensa quanto a canção de Belchior, “Como o diabo gosta”, é no mínimo salutar.
E embora a música traga em sua poética a política de modo bem explícito,
propomos um roubo, um uso pouco ortodoxo dessa canção, para estender a política
a uma dimensão não tão usual ou não tão popular. Roubamos Belchior não só em
busca de cem anos de perdão, mas para brincarmos de pensar. Roubamo-lo sem querer
interpretar, porém, antes, para experimentar. Roubamos seus versos para jogar
com uma ontologia da diferença como o diabo gosta...
A ontologia ao longo da história da filosofia foi marcada pelo desejo de
estabelecer o ser do Ser, traçar suas características mais gerais ou a essência
do que rege as coisas e/ou as múltiplas existências. Ao menos essa é a região
da ontologia herdeira de Parmênides, que funda a realidade na ideia do Ser – a
constância da essência das coisas – e toda política que poderia advir daí. E
toda política nessas terras do Ser (ou terras de clausura) não pode ser senão
um “um peso nas costas”, “um atar as mãos”. Por outro lado, numa
contra-história da filosofia, encontramos os Cains da ontologia, os filhos
bastardos e malditos, os herdeiros de Heráclito, para os quais a realidade
funda-se não na constância do Ser, e sim na dinâmica do Devir, do Porvir, do
Vir-a-ser, do Entre-ser, ?-Ser...
Já no primeiro verso de sua canção Belchior diz: “Não quero regra nem nada.
Tudo tá como o diabo gosta, tá”. Não seria divertido ver aí quase um aforismo
nietzschiano a condensar todo um universo em uma frase? A “regra”, como marca
da ontologia do Ser, a prolongar-se em conceitos como o Mesmo, a Identidade, a
Generalização? Foi através destes conceitos que o pensamento ocidental
conseguiu a proeza – e havemos-de admirar o feito – de igualar o desigual,
identificar o não-idêntico, generalizar sobre a multiplicidade do real a
abstração do Ser – uma questão de sobrevivência, é claro. Quem poderia se comunicar,
não fosse essa estrutura linguística capaz de “representar” o que não está
presente? Capaz de dizer “isso é”, quando bem sabemos que as cosias viajam
entre o que já deixou de ser e o que ainda não é? E essa espécie de abismo (Abgrund)
que se forma entre-seres, o diabo não o completa com um nada niilista ou mesmo
heideggeriano. “Não quero regra nem nada”, pois “Tudo tá como o diabo
gosta. E como o diabo gosta?
Bom, que deus seja a ideia máxima de Ser, que a ele sejam imputadas as
características mais nobres de uma entidade tão transcendental quanto
fantasiosa, não nos é novidade. Assim, não é de se espantar que associemos o
diabo a esta outra ontologia do devir. Se brincamos um pouco de personal
etimologist e vamos às origens de “diabo”, temos o grego “diábolos”,
formado por “dia” – separação, divisão, “aqui e ali” – e “bolos”
– algo como “atirar”. Diabo é aquilo que lança para longe a separar, a dividir,
a divergir. A representação, por sua vez, sendo ela fundada no ser, tem
como ferramenta crucial o “símbolo” – “sym” + “bolos”, aquilo que
é lançado junto, ou que lança para um mesmo ponto, a convergir. Ora, nada mais
normal, então, que aquilo que separa – o diabo – tenha adquirido tal carga
moral que bem conhecemos... Carga essa que, nós, a vestir a carapuça de pícaro
e a dançar sob seus guizos, subvertemo-la e fazemos do diabo personagem desse
jogo de pensar doutro modo.
Enquanto o símbolo tem a nobre função de unir, o diabo é aquilo que separa,
que multiplica e, por consequência, impede que caiamos no reino dos monoteísmos
onto-políticos do “é.”. O que o
diabo realmente gosta é de um belo “e...”.
A bailar sobre o pressuposto moral que sustenta não só a religião, mas também a
ontologia ocidental, temos o diabo como essa força que lança ao diverso – bem
outra coisa que a “diversidade” que hoje reina nas bocas de discursos
pré-moldados. E um diabo bem diabólico não seria nem o da contradição
(dialética) hegeliana, nem o da vici-dicção leibniziana, mas antes uma
diferenciação deleuziana e um devir nietzschiano e uma univocidade
spinoziana... e... e... e...
A traduzir esse ontologês, Belchior diz: “Já tenho este peso que me fere as
costas e não vou eu mesmo atar minha mão”. Ainda que a mente funcione sob as
regras do Ser/Identidade/Mesmo/Generalização e que a linguagem/representação,
daí derivada, seja útil ao ser humano, esse peso nos fere as costas. E se o
verbo fundamental ao nosso pensamento – e portanto, fundamental ao modo de
entender e agir no mundo – é, desde que o mundo é mundo, o verbo “ser”, não
precisamos nós mesmos atar nossas mãos, reduzindo a nossa ação na realidade a
ele.
Todavia, o que aqui propomos, não se trata de uma ontologia da diversidade,
do cada um por si fazendo sua transformação empresarial, sua ego-cultura
neo-liberal, ou consumindo seu próprio lifestyle customizado no Shopping
Center mais próximo. Essa ontologia que roubamos dos versos de Belchior é
uma ontologia do povo: esse múltiplo
não-indiferente, essas diferenças em comunidade, esse diverso que não forma
modelo, uma multidão, diriam ainda alguns. E como tal possui uma dimensão
política crucial: “a única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter”, a
única repetição possível – dada a natureza fugidia do devir – é a diferença
(i.e., a única coisa que retorna eternamente é a diferenciação). E assim nesse
jogo, abrimos espaço para que a política, enquanto espaço de transformação real, aconteça – e não a frenética
mudança capitalista que nos põem sempre e de novo no mesmo lugar, como se
andássemos em círculo –, pois “o que transforma o velho no novo bendito fruto
do povo será.”
Se reabrimos a política com a força dessa “ontologia da diferença”, então
nos deparamos com uma ontologia na qual uma “anarquia coroada” acontece: “é
nunca fazer nada que o mestre mandar”. E nessa “anarquia coroada” rejeitamos o
“mestre”, ainda que ele seja um Ser-da-Revolução, um modelo ontológico de
transformação (social). “Sempre desobedecer, nunca reverenciar”, pois, mesmo o
devir em sua “revolução”, pode desdobrar-se em um ser, perverso e moral – nada
garante o devir e o devir nada garante senão devir, a “anarquia coroada” de
nunca haver um mestre ontológico (e por isso político) que precisemos
reverenciar. Havemos-de estar, assim, como o diabo gosta: sempre prontos a nos
separarmos dos fascismos onto-políticos à espreita. E nesse jogo da política da
verdade, que não raro se reduz à politicagem partidária entre absolutistas e
relativistas e cujo tabuleiro encontra-se em uma mesa disposta sobre um chão e
sob um céu que se estendem a perdermo-los de vista, por que não brincarmos de
esconde-esconde?