02/01/2018

UMA ONTOLOGIA COMO O DIABO GOSTA

"Não quero regra nem nada. / Tudo tá como o diabo gosta, tá. / Já tenho este peso, que me fere as costas / e não vou, eu mesmo, atar minha mão. / O que transforma o velho no novo / bendito fruto do povo será. / E a única forma que pode ser norma / é nenhuma regra ter, / é nunca fazer nada que o mestre mandar, / sempre desobedecer, / nunca reverenciar."

Belchior - Como o diabo gosta






Em tempos politicamente tenebrosos, retomarmos uma música politicamente tão intensa quanto a canção de Belchior, “Como o diabo gosta”, é no mínimo salutar. E embora a música traga em sua poética a política de modo bem explícito, propomos um roubo, um uso pouco ortodoxo dessa canção, para estender a política a uma dimensão não tão usual ou não tão popular. Roubamos Belchior não só em busca de cem anos de perdão, mas para brincarmos de pensar. Roubamo-lo sem querer interpretar, porém, antes, para experimentar. Roubamos seus versos para jogar com uma ontologia da diferença como o diabo gosta...

A ontologia ao longo da história da filosofia foi marcada pelo desejo de estabelecer o ser do Ser, traçar suas características mais gerais ou a essência do que rege as coisas e/ou as múltiplas existências. Ao menos essa é a região da ontologia herdeira de Parmênides, que funda a realidade na ideia do Ser – a constância da essência das coisas – e toda política que poderia advir daí. E toda política nessas terras do Ser (ou terras de clausura) não pode ser senão um “um peso nas costas”, “um atar as mãos”. Por outro lado, numa contra-história da filosofia, encontramos os Cains da ontologia, os filhos bastardos e malditos, os herdeiros de Heráclito, para os quais a realidade funda-se não na constância do Ser, e sim na dinâmica do Devir, do Porvir, do Vir-a-ser, do Entre-ser, ?-Ser...

Já no primeiro verso de sua canção Belchior diz: “Não quero regra nem nada. Tudo tá como o diabo gosta, tá”. Não seria divertido ver aí quase um aforismo nietzschiano a condensar todo um universo em uma frase? A “regra”, como marca da ontologia do Ser, a prolongar-se em conceitos como o Mesmo, a Identidade, a Generalização? Foi através destes conceitos que o pensamento ocidental conseguiu a proeza – e havemos-de admirar o feito – de igualar o desigual, identificar o não-idêntico, generalizar sobre a multiplicidade do real a abstração do Ser – uma questão de sobrevivência, é claro. Quem poderia se comunicar, não fosse essa estrutura linguística capaz de “representar” o que não está presente? Capaz de dizer “isso é”, quando bem sabemos que as cosias viajam entre o que já deixou de ser e o que ainda não é? E essa espécie de abismo (Abgrund) que se forma entre-seres, o diabo não o completa com um nada niilista ou mesmo heideggeriano. “Não quero regra nem nada”, pois “Tudo tá como o diabo gosta. E como o diabo gosta?

Bom, que deus seja a ideia máxima de Ser, que a ele sejam imputadas as características mais nobres de uma entidade tão transcendental quanto fantasiosa, não nos é novidade. Assim, não é de se espantar que associemos o diabo a esta outra ontologia do devir. Se brincamos um pouco de personal etimologist e vamos às origens de “diabo”, temos o grego “diábolos”, formado por “dia” – separação, divisão, “aqui e ali” – e “bolos” – algo como “atirar”. Diabo é aquilo que lança para longe a separar, a dividir, a divergir. A representação, por sua vez, sendo ela fundada no ser, tem como ferramenta crucial o “símbolo” – “sym” + “bolos”, aquilo que é lançado junto, ou que lança para um mesmo ponto, a convergir. Ora, nada mais normal, então, que aquilo que separa – o diabo – tenha adquirido tal carga moral que bem conhecemos... Carga essa que, nós, a vestir a carapuça de pícaro e a dançar sob seus guizos, subvertemo-la e fazemos do diabo personagem desse jogo de pensar doutro modo.

Enquanto o símbolo tem a nobre função de unir, o diabo é aquilo que separa, que multiplica e, por consequência, impede que caiamos no reino dos monoteísmos onto-políticos do “é.”. O que o diabo realmente gosta é de um belo “e...”. A bailar sobre o pressuposto moral que sustenta não só a religião, mas também a ontologia ocidental, temos o diabo como essa força que lança ao diverso – bem outra coisa que a “diversidade” que hoje reina nas bocas de discursos pré-moldados. E um diabo bem diabólico não seria nem o da contradição (dialética) hegeliana, nem o da vici-dicção leibniziana, mas antes uma diferenciação deleuziana e um devir nietzschiano e uma univocidade spinoziana... e... e... e...

A traduzir esse ontologês, Belchior diz: “Já tenho este peso que me fere as costas e não vou eu mesmo atar minha mão”. Ainda que a mente funcione sob as regras do Ser/Identidade/Mesmo/Generalização e que a linguagem/representação, daí derivada, seja útil ao ser humano, esse peso nos fere as costas. E se o verbo fundamental ao nosso pensamento – e portanto, fundamental ao modo de entender e agir no mundo – é, desde que o mundo é mundo, o verbo “ser”, não precisamos nós mesmos atar nossas mãos, reduzindo a nossa ação na realidade a ele.

Todavia, o que aqui propomos, não se trata de uma ontologia da diversidade, do cada um por si fazendo sua transformação empresarial, sua ego-cultura neo-liberal, ou consumindo seu próprio lifestyle customizado no Shopping Center mais próximo. Essa ontologia que roubamos dos versos de Belchior é uma ontologia do povo: esse múltiplo não-indiferente, essas diferenças em comunidade, esse diverso que não forma modelo, uma multidão, diriam ainda alguns. E como tal possui uma dimensão política crucial: “a única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter”, a única repetição possível – dada a natureza fugidia do devir – é a diferença (i.e., a única coisa que retorna eternamente é a diferenciação). E assim nesse jogo, abrimos espaço para que a política, enquanto espaço de transformação real, aconteça – e não a frenética mudança capitalista que nos põem sempre e de novo no mesmo lugar, como se andássemos em círculo –, pois “o que transforma o velho no novo bendito fruto do povo será.”


Se reabrimos a política com a força dessa “ontologia da diferença”, então nos deparamos com uma ontologia na qual uma “anarquia coroada” acontece: “é nunca fazer nada que o mestre mandar”. E nessa “anarquia coroada” rejeitamos o “mestre”, ainda que ele seja um Ser-da-Revolução, um modelo ontológico de transformação (social). “Sempre desobedecer, nunca reverenciar”, pois, mesmo o devir em sua “revolução”, pode desdobrar-se em um ser, perverso e moral – nada garante o devir e o devir nada garante senão devir, a “anarquia coroada” de nunca haver um mestre ontológico (e por isso político) que precisemos reverenciar. Havemos-de estar, assim, como o diabo gosta: sempre prontos a nos separarmos dos fascismos onto-políticos à espreita. E nesse jogo da política da verdade, que não raro se reduz à politicagem partidária entre absolutistas e relativistas e cujo tabuleiro encontra-se em uma mesa disposta sobre um chão e sob um céu que se estendem a perdermo-los de vista, por que não brincarmos de esconde-esconde?