Muitos
comentadores liberais e de esquerda têm notado como a epidemia de coronavírus
serve para justificar e legitimar medidas de controle e regulação da população
que eram, até agora, impensáveis em uma sociedade democrática ocidental. O
confinamento total da Itália não é um sonho erótico (wet dream)
totalitário tornando-se realidade? Não é de admirar que (ao menos da maneira
como isso parece agora) a China, que já tem amplamente praticado modos de
controle social digitalizados, tenha provado estar mais bem equipada para lidar
com epidemias catastróficas. Isso significa que, ao menos em alguns aspectos, a
China é nosso futuro? Aproximamo-nos de um Estado de Exceção Global? As
análises de Giorgio Agamben ganharam nova atualidade?
Não
surpreende que o próprio Agamben chegou a essa conclusão: ele reagiu à
epidemia de coronavírus de uma maneira radicalmente diferente da maioria dos
comentadores. Ele deplorou as “frenéticas, irracionais e totalmente imotivadas
medidas de emergência para uma suposta epidemia de coronavírus”, que seriam
apenas outra variante de gripe, e perguntou: “porque a mídia e as autoridades
estão se empenhando a espalhar um clima de pânico, provocando um verdadeiro e
próprio estado de exceção, com sérias limitações das movimentações e suspensão
do funcionamento normal das condições de vida e de trabalho em regiões inteiras?”
Agamben vê
a principal razão para esse “comportamento tão desproporcional” na “crescente
tendência de usar o estado de exceção como paradigma normal de governo.” As
medidas impostas permitem ao governo limitar seriamente nossas liberdades por
um decreto do poder executivo:
A desproporção em relação ao que, segundo o CNR, é uma normal gripe, não muito diferente daquelas recorrentes todos os anos, salta aos olhos. Parece quase que, esgotado o terrorismo como causa de medidas de exceção, a invenção de uma epidemia possa oferecer o pretexto ideal para ampliá-las além de todo limite.
A segunda
razão “é o estado de medo que nos últimos anos foi evidentemente se difundindo
nas consciências dos indivíduos e que se traduz em uma verdadeira necessidade
de estados de pânico coletivo, para o qual a epidemia mais uma vez oferece o
pretexto ideal.” Agamben
descreve um importante aspecto do funcionamento do controle estatal em
epidemias em andamento. Mas há questões que permanecem abertas: Por que o poder
estatal estaria interessado em promover tal pânico, que é acompanhado de
desconfiança do poder estatal (“eles não têm jeito, não estão fazendo o
suficiente...”) e que perturba a suave reprodução do capital? Realmente faz
parte do interesse do capital e do poder estatal desencadear uma crise
econômica global para revigorar seu reinado? Os sinais evidentes de que não são
apenas as pessoas comuns, mas também o poder estatal que está em pânico, pois
completamente ciente de não ser capaz de controlar a situação – estes sinais são
realmente apenas um estratagema?
A reação de
Agamben é a forma estrema de uma generalizada postura de leitura de esquerda do
“pânico exagerado” causado pela propagação do vírus como uma mistura de
exercício de poder de controle social e elementos de absoluto racismo (“é culpa
da natura ou da China). Entretanto, tal interpretação social não faz a
realidade da ameaça desaparecer. Isso realmente nos compele a restringir nossas
liberdades? Quarentenas e medidas similares, claro, limita nossa liberdade, e novos
“Julians Assanges” são necessários para revelar seus possíveis abusos. Mas a ameaça da infecção viral também dá um
tremendo impulso para novas formas de solidariedades locais e globais, além
deixar clara a necessidade de controle sobre o próprio poder. As pessoas estão
certas em manter a responsabilidade do poder estatal: você tem o poder, agora
mostre-nos o que você pode fazer! O desafio que a Europa encara é provar que o
que a China fez pode ser feito de uma maneira mais transparente e democrática:
A China introduziu medidas que a Europa Ocidental e os EUA provavelmente não tolerariam, quiçá em detrimento deles mesmos. Mas francamente, é um equívoco interpretar reflexivamente todas as formas de detecção e modelização como “vigilância” e governança ativa como “controle social”. Precisamos de um vocabulário diferente e mais nuançado das intervenções.²
Tudo se
articula em torno desse “vocabulário mais nuançado”: as medidas necessitadas
por uma epidemia não deveriam ser automaticamente reduzidas ao paradigma
habitual da vigilância e do controle propagada por pensadores como Michel
Foucault. O que temo hoje mais do que as medidas utilizadas pela China (e
Itália e...) é que eles utilizem essas medidas de um modo que não funcionará
para conter a epidemia, enquanto as autoridades manipulam e escondem os
verdadeiros dados.
Tanto a
Direita Alternativa quanto a Esquerda Fake recusam-se a aceitar a plena
realidade da epidemia, o que a dilui em um exercício de redução
socioconstrutivista, isto é, denunciando-a por conta de seu sentido social.
Donald Trump e seus partidários repetidamente insistem que a epidemia é uma
trama dos Democratas e da China para fazê-lo perder as próximas eleições,
enquanto alguns da Esquerda denunciam as medidas propostas pelos aparatos estatais
e de saúde como sendo contaminadas por xenofobia e, portanto, insistem em
apartar as mãos, etc. Tal postura deixa escapar o paradoxo: não apertar as mãos
e isolar-se quando necessário é forma atual de solidariedade.
Quem, hoje,
estará em condições de apertar as mãos e abraçar? Os privilegiados. O
“Decamerão” de Giovanni Boccaccio é composto de histórias contadas por um grupo
de sete mulheres jovens e três homens jovens protegidos em um vilarejo isolado
nos aforas de Florença para escapar à peste que afligia a cidade. A elite
financeira se retirará em zonas isoladas, deleitando-se a contar histórias ao
estilo “Decamerão”. (Os ultra-ricos já estão migrando com aviões particulares
para pequenas ilhas exclusivas no Caribe.) [...]
O que me
parece especialmente incômodo é como, quando a mídia anuncia algum confinamento
ou cancelamento, eles, via de regra, adicional uma limitação temporal fixa: uma
fórmula “as escolas estarão fechadas até 4 de abril”. A grande expectativa é
que, depois do pico que deve chegar logo, as coisas retornaram ao normal. Nesse
sentido, já fui informado que um simpósio da universidade foi adiado para
setembro... A armadilha é que, mesmo quando a vida finalmente retornar ao
normal, não será o mesmo normal ao que estávamos acostumados antes do surto:
coisas a que estávamos acostumados como sendo parte da vida cotidiana não mais
poderão ser tomadas como garantidas; teremos que aprender a viver uma vida
muito mais frágil com constantes ameaças, espreitando-nos na esquina. [...]
Então,
teremos todos que mudar inteiramente nossa postura frente a vida, frente nossa
existência como seres vivos entre outras formas de vida. Em outras palavras, se
entendemos “filosofia” como o nome para nossa orientação básica na vida, teremos
de experimentar uma verdadeira revolução filosófica. [...]
Aqui
encontramos o que Hegel chamou de “juízo especulativo”, uma asserção de
identidade entre o mais alto e o mais baixo. O exemplo mais conhecido de Hegel
é o “Espírito é um osso” em sua análise da frenologia em “A Fenomenologia do
Espírito”, e nosso exemplo deveria ser o “Espírito é um vírus.” O espírito
humano também não seria uma espécie de vírus que parasita o animal humano,
explora-o para sua própria reprodução, às vezes ameaçando destruí-lo? E, dado
que o medium do espírito é a linguagem, não devemos esquecer que, em seu
nível mais elementar, linguagem é também algo mecânico, uma questão de regras
que temos de aprender e seguir.
Richard
Dawkins afirmou que memes são “vírus da mente”, entidades parasitas que
“colonizam” a mente humana, usando-a como meio para multiplicar-se. É uma ideia
cujo autor não é ninguém menos que Liev Tolstói. [...] A categoria básica da
antropologia de Tolstói é infecção: um sujeito humano é um medium passivo
infectado por elementos culturais carregados de afectos que, como bacilos
contagiosos, propagado de um indivíduo a outro. E Tolstói nisso vai até o fim:
ele não opõe a essa propagação dessa infecção afectiva uma autonomia espiritual
verdadeira; ele não propõe uma visão heroica de educar-se a si mesmo para ser
um sujeito ético autônomo e maduro por meio da eliminação de bacilos
infeciosos. A única luta é a luta entre boas e más infecções: o próprio
Cristianismo é uma infecção, ainda que – para Tolstói – uma boa infecção.
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1) Tradução da versão (parcial) do texto em francês: https://tinyurl.com/qq5u43w. Versão (completa) em inglês: http://thephilosophicalsalon.com/monitor-and-punish-yes-please/
2) Benjamin Bratton, comunicado pessoal.