10/07/2016

O NAVIO É A HETEROTOPIA POR EXCELÊNCIA

Uma cena. “O navio é a heterotopia por excelência.” (p.30) Penso em outra nau, mas a deixo em suspenso. Volto àquilo que me possibilitou fazer este movimento de uma nau a outra, preciso retornar ao que me permitiu conectá-las, não tanto por uma tábua que se atravessa da lateral de uma embarcação à lateral de outra por sobre o mar; antes, como um gancho que arremesso e se fixa no mastro da outra embarcação e por uma corda, que do gancho se estica, permite-me saltar de um ao outro – um caminho sem volta, é preciso calcular e analisar antes do salto, pois a corda que leva não me traz de volta –; ou ainda, deslizo de um navio ao outro não como tripulante que anda pela tábua ou se lança utilizando a corda, mas como corpo no qual esses topos que são as embarcações se formam, dissolvo-me e torno-me água, adoto o ponto de vista de mar (plano de imanência, plano liso) e assim posso mover-me de um a outro, sem mais os impedimentos que sujeito e objeto implicam.

Outra cena. Criança – “[...] quinta-feira à tarde – a grande cama dos pais. É nessa grande cama que se descobre o oceano, pois nela se pode nadar entre as cobertas; depois, essa grande cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta, pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois ali se pode virar fantasma entre os lençóis [...]” (p.20). Navegar, viajar, flutuar, devir. Vive-se, movimentos e repousos, deslocamentos e paradas; e de um modo geral há na sociedade uma diversidade de espaços: cafés, metros, ruas, hotéis, casas, fábricas etc.; não obstante, há espaços que não são apenas diversos, são diferentes, são absolutamente outro: conta-espaços ou heterotopias; e “[a]s crianças conhecem perfeitamente esses contra-espaços [...]” (p.20). Cria-se, descria-se, crê-se e crescem sobre a cama, debaixo dos cobertores e desfazem à chegada dos pais, mas “[n]a verdade, esses contra-espaços não são apenas invenção das crianças; acredito nisso muito simplesmente porque as crianças jamais inventam coisa alguma; são os homens, ao contrário, que inventaram as crianças, que lhes cochicharam seus maravilhosos segredos; e, em seguida, esses homens, esses adultos se espantam quando as crianças, por sua vez, buzinam aos seus ouvidos...” (p.20).

Mais uma cena. E se elas buzinam aos ouvidos dos adultos e lhes devolvem o segredo, seus segredos menores, as crianças não o fazem só: crianças ao Adulto, mulheres ao Homem, animais ao Humano, moléculas à Massa, mitos à Ciência [...] e os loucos, estes que agora, sem lugar para sua loucura, são enclausurados, medicados, (a)normalizados, educados, enfim, adoecem sob a razão. Estes, que tem suas potências utopicizadas, seus corpos homotopicizados, ainda arranjam espaços nestas distopias em que vivem para, como as crianças, heterotopicizar. Eles criam espaços outros entre o manicômio e a doença mental, nos interstícios fazem suas derivas, entre um porto e outro, entre um remédio e outro, entre um veredito e outras sentenças eles traçam linhas de fuga e escapam, mesmo que tenham de continuar no intermezzo, ainda que tenham de atracar aqui ou acolá para outra vez voltarem a navegar. E nesses movimentos de produzir heterotopias, eles fazem um enorme barulho, buzinam aos ouvidos, mas se pode ouvir ali um segredo, um segredo mais profundo, um segredo menor – um segredo que se contou a eles, que se esqueceu e que agora eles fazem lembrar.

Última cena, primeira cena. “O navio é a heterotopia por excelência.” (p.30) Penso em outra nau, o navio dos loucos, stultifera navis...
  Het narrenschip de Hieronymus Bosch

REFERÊNCIA

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias / Le corps utopique, les heterotopies. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1 edições, 2013.

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